Carta a um amigo.

caro amigo, já não sei há quanto tempo não escrevo para você, mas acontece que hoje, enquanto escutava a uma antiga música recém descoberta por mim, somente o teu rosto me veio à mente, e não pude controlar o impulso de transformar em palavras os meus pensamentos direcionados a você, era tudo maior que eu, e enquanto a melodia evoluia, teus traços se tornavam cada vez mais nítidos em minha cabeça.

acontece que eu não sei se você conhece o que estou escutando. descobri hoje, acredita? sérgio sampaio cantando “meu pobre blues”. sei que você, assim como eu, gosta do pouco que conhece desse homem, até porque nossas metas de colocar os blocos na rua e nosso conhecimento de que tinha que acontecer não vieram do nada, no entanto, apesar de nossas admiração, não sei se você tinha conhecimento dessa canção. se não tinha, passe a ter, pois é bela e me tocou como há tempos o cancioneiro não fazia, e eu nem faço ideia do porquê disso, mas sei que aconteceu.

é verdade que, talvez, eu esteja mais propenso a ter esses tais sentimentos que arrebatam e nos fazem tomar ações inesperadas, você sabe, desde os acontecimentos mais recentes, a partida da alê, me deixando meio que de coração na mão, sem compreender direito o que eu tinha feito, ou deixado de fazer, mas é aquela coisa, né? “tem que acontecer. se um vai perder, outro vai ganhar”. atualmente, as notícias que tenho dela vêem através do fernando, quando vem me visitar a cada quinze dias. ele está gigante, cara, você devia vê-lo. vive perguntando por você. toda vez que ele está para chegar contrato uma faxineira para dar um trato no apartamento e deixá-lo habitável; no dia anterior à chegada dele três sacolas de lixo são levadas do apartamento, a maioria delas é de papel, comida porcaria e filtro de café usado, ocasionalmente algumas garrafas de cerveja, mas isso tem se tornado cada vez mais raro. não que eu tenha parado de beber, mas acontece que descobri um bar aqui do lado de casa, e termino bebendo por lá. mas já não sou o mesmo de anos atrás. lembra de quando varávamos a noite inteira com garrafas de whisky, cigarros, água de côco e gelo, conversando noite a dentro sobre os mais diversos assuntos, sem nunca achar que aquilo tudo poderia chegar a um fim, e só nos limitávamos porque, quando menos parecia possível, o sol nascia e quem estivesse fora de casa deveria retornar? os tempos mudaram, e estou velho, amigo, e acho que você também.

já faz quanto tempo desde a nossa última conversa? meses, anos? na verdade, não importa, porque sinto, enquanto escrevo essas palavras, que apesar de todas essas centenas de dias que se passaram, e os quilômetros de terra e mar a nos separar, ainda somos tão próximos quanto poderíamos ser, ou quase isso. pode parecer um tanto estranho, hipersensível, e tudo mais, mas é que quando se fala de um irmão, não se pode usar outra palavra se não amor.

eu te amo, cara. saudades.

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“q tc?”

nas horas de solidão costumava entrar em sites de bate papo. esse era um hábito que adquiriu no início do quadro de insônia e já se prolongava há meses. nas salas de conversa ele se sentia melhor consigo mesmo: no meio de todos os esquecidos da madrugada, ele conseguia se encaixar. havia um local no meio da noite ao qual ele pertencia.

três da manhã no relógio e, enquanto todos os amigos dormiam – algo que ele mesmo deveria fazer -, ele, com os ombros cansados, os olhos pesando e ardendo, buscava pessoas desconhecidas com quem falar sobre os aspectos mais corriqueiros da vida: seu trabalho, seus objetivos, suas conquistas, seus amores. gostava de saber o que aquelas pessoas tinham a dizer, queria saber as opiniões da “gatinha_sapeca” sobre sua vida, bem como ansiava por entender o que a levava ali, como ele, em busca de outros seres solitários, ou ainda corrigir mentalmente seu português, bem como da maioria das pessoas com quem conversava. às 03:25 entrou “ligia”, um apelido muito incomum numa sala.

“alguém de verdade aí?” ela perguntou privativamente para todo mundo.

“excelente questionamento.” foi a resposta dele a ela, também numa janela privada.

“oi.”

“olá, e essa noite, como está?”

“muito mal.”

“ah. bem, se quiser falar sobre isso, estou aqui. não se preocupe em me fazer dormir, tomei café demais para um dia, e está mais perto da hora de levantar que da de deitar.”

alguns minutos se passaram até que ele obtivesse uma resposta dela.

“desculpa. é que fui preparar algo para comer aqui.”

“onde é aqui?”

“aqui em casa.”

“certo, certo. resistente a falar demais. compreensível. quero deixar claro que não sou um desses malucos que buscam suas vítimas na internet. talvez o te_kero_toda seja assim, mas estou aqui só pela distração que pessoas novas são.”

“ahahaha bom isso de distração. bem honesto da sua parte.”

gostou dela por não ter usado kkk ou rs como forma de expressar um possível riso. sabia que estava longe de fazê-la rir, mas na internet as pessoas buscam consolo nas menores das expressões, e a risada é a melhor  maneira de mostrar que a conversa está indo menos mal do que o esperado. ela estava digitando.

“o que te fez entrar nesse bate papo?”

“insônia. tristeza, associada a isso, talvez. eu diria que a vida e as escolhas que tomei me trouxeram a essa sala. ahaha. e você, o que faz uma suposta mulher chamada ligia entrar numa sala de bate papo com o apelido mais honesto e cara limpa que já vi aqui em tempos?”

“então você vem sempre aqui?”

“infelizmente a insônia e a solidão vêm batido em minha porta há um tempo.”

“já é a segunda vez que você fala em solidão. qual é a dessa depressão, homem de deus?”

“ei, ei, ei! calma lá! eu ainda não sei nada sobre você e suas motivações. você já sabe que sofro de insônia e, possivelmente, tenho alguns traços depressivos. tudo o que sei de você é que talvez seja uma mulher, que talvez se chame ligia e que talvez também esteja sofrendo de insônia nessa noite chuvosa. então me diga em nome dos tempos áureos desse bate papo: nome e idade.”

“que inquisitivo você! meu apelido é meu nome mesmo, e eu tenho 43 anos. e você, senhor ‘lorde_soth’, suponho que esse não seja seu nome e nem que seja da nobreza. nome e idade, e aproveito para perguntar o que é que você faz da vida. digo, em que você trabalha.”

“é, meu nome não é soth, não sou um lorde. na verdade, esse meu apelido foi dado a mim por mim mesmo. ahaha é um personagem trágico que gosto muito. pode procurar na wikipedia. deve ter algo sobre ele.”

“hm… pesquisar na wikipedia… certo…”

“é, eu sei, não é a melhor fonte nem nada, mas quem precisa confiar na fonte de um personagem de um livro? além do mais, não é que haja dissertações de mestrado analisando os traços desse personagem nem nada. então, contente-se com wikipedia.”

“calma, calma. contento-me sim, cavaleiro da rosa negra. mas, além de ser um cavaleiro de um livro que nunca ouvi falar, o que você faz?”

“meu nome é saulo, tenho 32 anos, e sou professor de inglês. agora você sabe mais sobre mim do que eu sobre você. invertamos isso agora.”

“ahaha e o que você quer que eu diga? o que eu faço? sou mãe de duas crianças, uma de 25 e uma de 13.”

“criança de 25 anos, hein?”

“ahahaha é sim. sempre será um bebê para mim.”

“certo, certo. acredito que isso seja algo de mães. você é mãe profissional ou tem outro trabalho?”

“sou formada em psicologia, mas nunca trabalhei na área. sou agente da polícia federal e passo a maior parte do tempo on line procurando pedófilos.”

“ahahahaha que história sensacional.”

“não é? também acho muito boa, principalmente quando os encontro.”

“alguma sorte hoje?”

“até agora nada.”

“ah.”

“a não ser que você seja pedófilo.”

“ahahaha não, senhora agente da polícia federal. gosto das minhas garotas maiores de idade.”

“continue assim e não terei que aparecer na sua casa, saulo.”

“continuarei, dona lígia.”

“muito bem. mas hoje não é a busca por pedófilos que me fez entrar nesse bate papo, mas, como você colocou quando falou de si mesmo, a solidão.”

“que é que houve?”

“vai ser meu psicólogo, teacher?”

“não posso, não estudei para isso, mas, diacho, aqui você pode escrever sabendo que alguém do outro lado está lendo e, se tivermos sorte, vai interagir com a gente. e não é isso que todos nós buscamos aqui nesse bate papo na madrugada? um pouco de interação? alguém que demonstre um mínimo de interesse por nós?”

“isso e criancinhas.”

logo ela digitou

“ahahaha estou brincando com você. sei que você não tem um histórico de pornografia infantil.”

“ah é? como sabe disso?”

“porque acabei de checar seu histórico criminal, e está tudo limpo. você é um homem bastante honesto para quem visita essas salas de bate papo, sabia? na verdade, de todos aqui, você é a maior surpresa que eu tive em um bom tempo.”

essa era a conversa mais esquisita que ele teve na história de suas insônias.

“oi?”

“você é um bom garoto, saulo. gostei de você. vou tentar dormir agora. me manda um email esses dias, a gente marca de tomar um café, uma cerveja, um suco.” e ela digitou seu endereço de email.

“ok, eu acho.”

“boa noite, guri.”

“boa noite, dona policial.”

“ahahah se cuida.”

e às 04:46 lígia saiu da sala.

saulo não conseguiu fechar os olhos até as 17:36, quando chegou em casa depois de sua última aula do dia e, depois de um banho, vestiu uma bermuda limpa e deitou na cama. pensara o dia inteiro naquela conversa esquisita, em como aquela suposta mulher o fez sentir medo e desejo ao mesmo tempo, excitação, vontade de estar vivo e de conhecê-la melhor. acreditou ter sonhado com ela ao acordar às 03:25, e buscou algo para comer em sua geladeira. não pensou que faria aquilo, mas às 04:13 escreveu o email para lígia.

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Em seus braços.

ao deitar, após trancar-se em seu quarto ainda cedo da noite, a fim de distanciar-se do mundo, estava acompanhado de seus pensamentos: esse era um tipo de solidão que costumava cultivar, por acreditar ser produtiva para si, sua melhor companhia. comportamento esse de caráter mais autodestrutivo que construtivo: esticado no colchão, lamentava-se com os pensamentos do passado (as tais lembranças), angustiava-se com as metas para o futuro, ainda tão distantes, e lamentava por todos os planos do presente que deveria executar, porém relevava e os deixava em segundo plano para um futuro próximo, caindo numa série de pensamentos que o faziam perceber que quanto mais empurrava o presente para o futuro, mais adiava o futuro, vivendo num vazio de tempo, um lugar nenhum.

as pupilas dilatadas tentam captar o mínimo de luz para que ele seja capaz de discernir o ambiente ao seu redor, mas àquela hora, o monte de roupas sujas no canto do quarto bem poderia ser uma pessoa sentada em posição de lótus a observá-lo. sua mente tenta convencê-lo do contrário, ele está só (mas quem realmente está só na escuridão? diz uma voz baixinha no fundo de sua mente). o coração bate uma, duas vezes em um segundo, sua boca seca, o ar entra mais difícil pela narina, começa a aumentar a frequência com que inspira, sente um frio – não o frio da noite, mas o frio que vem de dentro de si -, sua garganta começa a fechar, dar um nó.  fecha os olhos.

está deitado na cama com a escuridão. seria capaz de tocá-la, até, mas não o faz, “como poderia”, pensa, “tocar a intocável?”. por isso, pela falta de crença, pela ausência de ação, por sua impotência diante dela, é invadido por ela, que o toma em seus braços como uma mãe a acalentar um filho que acorda de um pesadelo no meio da noite e não consegue voltar a dormir com medo do escuro. sente os braços dela ao redor de seu corpo. não sente mais nada depois disso.

acorda depois de alguns segundos em apneia. o quarto está frio, e sua testa molhada de suor.  não consegue dormir novamente, mas ainda são quatro da manhã.

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Ir.

“eu quero ir.”
“ir pra onde?”
“embora.”
“ir embora?”
“ir embora.”
“e pra onde?”
“não sei. só embora.”
“e por quê?”
“porque hoje acordei pensando que talvez o melhor fosse ir embora.”
“de onde? para onde? você vai me deixar, é isso?”
“sim. digo, não deixar você, mas deixar tudo. você está entre tudo o que existe para mim.”
“e o que você vai fazer, se matar?”
“não. não sei.”
“acho que você não está bem. acho que você precisa pensar melhor no que anda dizendo e nas vontades que tem sentindo.”
“é que às vezes é difícil de pensar e entender o que sentimos, inclusive as nossas vontades. especialmente as nossas vontades.”
“acho que você precisa de ajuda. uma terapia te auxiliaria, talvez.”
“é, talvez. mas hoje eu quero ir.”
“e não dá pra controlar essa tua vontade ‘súbita e imperiosa’?”
“não se controla vontades, ainda menos as ‘súbitas e imperiosas’. a questão não é que eu vá abandonar você aqui, te deixando em casa cuidando somente da tua vida, mas é que não tenho sentido vontade de nada além de ir.”
“então já é algo de tempos? essa ‘vontade’ já é pensada há tempos?”
“não. aconteceu hoje quando acordei. abri os olhos e vi os lençóis jogados no chão, e senti alguma coisa, não sabia o que era. mas aí me virei na cama e vi o teto, a lâmpada apagada, pendendo devagarzinho, o sol tentando entrar pelas frestas da janela do quarto, e aí descobri o que era: eu tinha que ir.”
“olha…”
“o quê?”
“…”
“desculpa, não é nada com você, com a gente. talvez seja com a gente, já que eu sou parte de nós dois, mas…”
“vai.”
“oi?”
“vai embora.”
“… obrigado.”

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virgínia revisitada.

já li hemmingway. não sei você, mas da última vez que pensei em perguntar, que perguntei, na verdade, nem você nem eu havíamos lido. acontece que o tempo passou e os livros vieram e se foram. antes fossem só os livros, não é? uma série de coisas tomaram a mesma decisão dos folhosos. devo confessar que não li muito dele, foi só “o velho e o mar”, mas acontece que hoje eu não sei mais das tuas leituras, como uma vez soube tão melhor. o que você tem lido, virgínia? você já leu sobre o santiago? o que é que te ilumina os pensamentos no momento? quais são nossos pontos em comum, além do nosso passado, da nossa história? o que nos difere ainda mais um do outro, a ponto de não nos completarmos nunca um ao outro, mas ainda assim conseguirmos manter uma certa sintonia que, creio eu, é o suficiente para não nos sentirmos especialmente constrangidos ou desconfortáveis na presença um do outro? nossos silêncios não nos machucam, nunca machucaram, na verdade, como machucaram os silêncios de nossos amantes, mas nos ajudam a nos compreender, virgínia. só que os silêncios um do outro a gente sabe ouvir, já que nossa amizade foi iniciada em silêncio, e só depois é que as palavras foram ditas e reditas e reditas, mas nunca malditas, até onde eu lembro. mas o que temos a dizer hoje um ao outro? talvez que ainda estamos aqui, vivos, chorando, sorrindo. e que sempre que fevereiro chegar, a saudade já não matará a gente. o que acontece é que das últimas coisas que sei é que você lamentou a morte do gabo, porque você gosta dele, e gosta até mesmo do “cem anos de solidão”, enquanto eu gosto dele apesar dos “cem anos”. mas o lance é que todos, de certa forma, lamentamos. acredito, no entanto, que o maior sofrimento para ele era viver esquecendo. imagina o que deve ser para um escritor viver tentando escrever e se esquecer como é que se escreve, a vida, que era escrita passa a ser dor; viver sem nem saber o que vivia, se é que vivia; porque a morte, às vezes, nos vem em vida; viver como se ele houvesse se tornado um personagem dele, amarrado demente a um lugar qualquer, só esperando a morte chegar. ela veio, como é para todo mundo. você hoje gosta mais de quê além dos latinos? sei que você tem uns tesões por cronistas da prosa leve, apesar de eu não saber bem o que se achar desses crônicas. acredito ser um trabalho complicado, apesar de fácil demais, se escrever uma crônica. o difícil é a assiduidade, mas com um bocadinho de disciplina e um pouquinho de persistência, se consegue cumprir as metas e os prazos. acontece que o teu cronista tem uma fórmula tão clara que seria possível emular um de seus textos, quase nenhum deles com mais de mil palavras. constantemente me pergunto o que ele escreve além daquilo. a verdade é que eu não o conheço, estou começando agora. o que você me diz? provavelmente estou errado, não é? mas está tudo bem, estou acostumado a não estar certo. quem está certo de tudo, afinal? mas me diga, virgínia, o que toca nos teus ouvidos? sei que as músicas que você ouve muito continuam sendo as mesmas que eu evito tanto escutar, mas sempre haverão aquelas que escutaremos juntos. mas será que não expandimos esse número tão seleto? ou o tempo só serviu para que esquecessemos as músicas da estação, reduzindo, assim, o que temos em comum em quesito musical. ano passado cheguei a acompanhar lançamentos de álbuns, escutei e reescutei uma série deles, gostando de muitos e desgostando de outros, mas quais deles você também escutou? às vezes chego a pensar que nenhum deles te agradaria, por serem tão bons, talvez, por serem tão diferentes de tudo o que você costuma escutar quando está em casa, à noite, sozinha (porque é só nessas horas que admitimos nossos reais gostos). não sei o que toca para você, mas toda vez que escuto que ela só tem dezessete, lembro de você imediatamente. mais até do que dela, que só tinha dezessete. virgínia, eu tenho trabalhado, olha só, e sei que você também, só que há mais tempo que eu. e há tanto tempo, virgínia, há tanto tempo vazio em nossos trabalhos. com o que você preenche os teus? consigo te imaginar indo na sala ao lado, conversando com as pessoas que eu não conheço, um copo de plástico na mão, um sorriso orgânico no rosto, os assuntos corriqueiros na ponta da língua – o tráfego, a novela, o fim de semana, a violência – , e o gosto do café na boca. eu digo café porque é o que eu faço. eu tomo café e converso amenidades, tento falar do futebol, puxo assunto sobre o clima, rio das piadas que já conheço e escuto histórias que não me interessam dizendo: “nossa, que interessante”. nesse tempo mudei minha ideia sobre o trabalho também: ele não denigre o homem, como já proferi, mas também não o constrói. às vezes é um empecilho, às vezes é uma fonte de oportunidades, mas a maior parte do tempo é tempo morto. e tempo morto deve ser enterrado. enterro o meu sob montanhas de café. nem sei se você gosta de um cafezinho, mas acontece que eu não consigo viver sem. ano passado passei treze dias seguidos sem tomar um gole, foi difícil, isso eu te digo, mas não foi sem motivo. foi uma época bem negra do meu ano. você tem que gostar de café, virgínia. você não tem cara de chá. o que mais você faz no teu tempo ocioso de trabalho? sei que você já foi chegada a um cigarro, mas será que você sai do conforto de um ar condicionado para se queimar no sol e torrar os pulmões? espero que não, isso não te faz bem. eu mesmo, que fumava quando bebia, deixei de fazer isso há um ano e, espero, logo mais deixarei de beber também. o engraçado é que anos atrás a bebida era menor, e foi crescendo, quando começamos a nos relacionar, virgínia, eu mal bebia e hoje, depois de muita merda e água pelo caminho, estou pensando até em deixar de beber! é que tenho dirigido mais, buscado conforto, tentado relaxar mais e fazer programas mais tranquilos. a idade chega para todos, virgínia, e eu quero mesmo é me sentir bem, provar coisas boas. sinto-me cansado de buscar coisas novas, quero o conforto das tradições. quero um bar para chamar de meu, conhecer os garçons e rir e brincar com eles, ser bem atendido, conhecer gente que eu não conheceria de outra forma, mas sempre do meu local confortável, não barulhento, não hostil. quero um canto legal para eu poder ler um livro em paz quando estiver cansado de ler trancado em casa, como quando eu ia até a praia, sentava na areia, num fim de tarde, e sentia o vento em meu rosto e ouvia o mar quebrando. às vezes a leitura nem avançava tanto, sabe, mas era sempre bom sentir a areia sob os pés e sentir o cheiro salgado tão de perto. e os filmes que você assistiu, quais foram? eram bons? e o teu cheiro, virgínia, ainda é o mesmo? lembra de quando eu te cheirava e meu pulmão queimava de tanto inspirar? você mudou ou é o mesmo? o cheiro da virgínia de anos atrás era o cheiro da alegria. espero que as mudanças que a vida traz não tenham interferido no aroma de virgínia. há tantas coisas que nos separam agora, virgínia, que eu sinto medo de a cola do passado já não prestar tanto assim. mas espero que não deixemos nada de ruim acontecer, e por ruim quero dizer o afastamento tão típico entre as pessoas que seguem suas vidas. e nós, querendo ou não, seguimos com as nossas. você se apaixonou, eu me apaixonei, uma, duas, trinta vezes ao longo desse período, e tiramos anos de nossas vidas para viver com pessoas que nos fizeram algum bem momentâneo, mas que hoje só têm o poder da lembrança. e lembranças, como o gabo podia confirmar, coitado, às vezes nos escapam facilmente. somos mais fortes que lembranças, não somos? apesar de tê-las tanto, ainda temos um presente, um presente distante como se futuro fosse, mas, ainda assim, real como só o agora pode ser. me pergunto, virgínia, o que você acha disso tudo, de crescer. eu, particularmente, não sou fã. sei que é preciso e sei que é a ordem natural, mas existem limites que não quero ultrapassar. não sei você. mudamos tanto, não é? talvez um dia soubéssemos as respostas um do outro para a maioria dessas perguntas que a vida nos faz, mas hoje não. e a culpa é do tempo. o tempo. “o tempo e suas águas inflamáveis”. acho essa imagem linda. já leu? já viu? é lavoura arcaica, do raduan nassar. a última vez que li esse livro, virgína, foi nos tempos em que ela ainda nem tinha dezessete e eu e você ríamos disso. faz tempo. naqueles tempos nenhum de nós havia lido hemmingway ainda. só que agora eu li. e você?

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Telefonema.

alô?

alô. oi.
oi.
e aí?
como tá?
indo. e você?
também.
fazendo?
nada demais. e você?
pensando.
certo.
pensando em fazer um café, daqueles bem fortes, bem cheios de aroma e sabor, para incensar a casa toda, sabe?
aham.
pensando também em comer um biscoito enquanto tomo o café, e assistir à televisão para me ajudar a não ter que pensar tanto.
é uma boa. pensar demais quase nunca é bom.
pensando em depois deitar e ficar enrolada nas cobertas por um tempo, sentindo o calor do meu corpo não escapar tanto para o ambiente, me isolando um pouco.
faz bem.
pensando em como já já vai escurecer e será novamente outra noite como todas as outras vezes foram noites e não conseguirei dormir por causa do café que estou fazendo. acabei de colocar  terceira concha de pó no filtro e a água já está na chaleira.
talvez você não devesse tomar tanto café assim, abra uma exceção hoje e tente dormir cedo, tente não fazer o que você está fazendo.
estou pensando em como logo logo vai ser duas da manhã e eu vou estar me sentindo só, sabendo que amanhã terei que acordar às seis para ir trabalhar, sabendo que de ontem para hoje eu só dormi cinco horas e que depois só dormirei mais quatro e a semana ainda está só no começo e não há horas o suficiente para dormir nos fins de semana porque eles são os únicos momentos em que eu talvez tenha a real chance de não pensar em nada.
estou pensando em como faz tempo que eu quero te ligar para dizer as coisas que venho pensando, porque venho pensando muito em você e em como você está e o que você tem feito, o que está fazendo agora, quem você conheceu essa semana, para que lugares foi, como vai a sua mãe e seu pai, sua avó e tua sobrinha, aquela fofa, e como vai o teu trabalho, tem salvo muitas vidas, aberto muitas pessoas? todas as vezes em que eu tento não pensar e ligo a televisão, algo que passa me faz automaticamente pensar em tudo o que acabei de falar, e aí eu me sinto um lixo, me sinto mal, mas mal mesmo, como achei que nunca fosse me sentir.
ana, olha…
fico pensando por que é que faz três semanas que eu não saio de casa, se eu sei que nada disso vai mudar coisa alguma. a verdade é que eu não quero sair de casa, porque não consigo achar que tenha qualquer coisa interessante. faz um tempo que não me interesso por nada. eu deixei de ler, carlos.
sério?
seríssimo.
…olha, ana. talvez a gente possa nos ver.
ana?
ana?
estou pensando.
certo.
estou pensando que talvez eu não devesse ter feito essa ligação. agora você vai achar que é por causa de você que passei por tudo isso. vai pensar que é porque ainda te amo que te liguei.
não, ana. eu sei que não. eu vi os jornais.
e não me ligou?
cheguei hoje de viagem.
foi para onde?
foi para onde?
para. onde. você. foi?
estava em bruxelas.
bruxelas… com ela?
… é.
vocês casaram, não foi?
foi.
foi a lua de mel?
foi.
acho melhor eu desligar.
ana, você não está bem.
olha, carlos. tem um motivo por que te liguei.
e qual foi ele?
acabei de perder minha família, estou só, você sabe. você, carlos, foi a última pessoa com quem me senti íntima,  por quem senti amor, com quem tive vontades absurdas: acordar todo dia de manhã, tomar café, construir uma casa, ter filhos, toda essa coisa. como você sabe, nada disso aconteceu.
eu sei. eu também estava lá.
é, mas você seguiu sua vida e se apaixonou novamente. eu tive minhas pessoas também, mas não tive mais intimidades. ninguém mais me beijava a nuca como você, ou segurava minha cintura com a firmeza das tuas mãos, ou me olhava com teus olhos. nenhum dos caras que eu tive sabia me indicar leituras tão boas quanto as tuas ou me cantava músicas com a voz grave no pé do ouvido. e aí agora eu perco as pessoas que eu amava, e estou sozinha no mundo. o que eu significo sem as pessoas que amo? que valor eu tenho sem o amor? e é por isso que eu te liguei, para saber se eu morri com eles, ou se ainda estou viva.
ana.
oi.
você sempre estará viva.
mas a morte…
a morte vem para todos. teus pais morreram, isso é triste. eu lamento muito e queria estar ao teu lado quando você precisou do apoio direto, mas não deu. você precisa de apoio agora. e agora eu posso te apoiar. conta comigo. quer conversar pessoalmente?
não sei, carlos, eu…
eu te levo um livro massa.
é?
é.
mas eu nem leio mais.
mas vai ler.
é?
é.
tá bom.
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poeira.

meu quarto é podre. sobre tudo há uma camada de poeira, algumas finas, outras mais grossas, mas nada escapa: livros, roupas, sapatos, sandálias, a mesa, o notebook. há uma caixa de livros que tenho há um ano e meio: ela sofre; o livro sobre a juventude de stálin, com pouco mais de dois meses: sofre; meus livros de semiologia médica e os de fisiologia e anatomia sofrem; minhas xerox de capítulos de livros de epidemiologia, histologia, neurologia, psiquiatria sofrem, pedaços de atlas mostrando as veias do corpo humano em azul e as artérias em vermelho mostram-se acinzentados devido à grossa camada de poeira sobre eles e até mesmo o livro que estou lendo agora sofre com isso. meu violão, que eu não toco há meses, sofre, minha nécessaire recheada de cartas de magic sofre, a mochila que peguei emprestada de uma amiga há um ano para viajar comigo pela europa agora sofre com isso; meu guarda roupa, que só tem umas três calças dentro e um bocado de papel velho desde que a prateleira em que eu deixava dobradas as minhas camisas cedeu e nunca mais se encaixou, sofre; quando me penteio, uma camada de poeira passa dos dentes do pente para meus cabelos e quando coloco meus óculos para enxergar o dia vejo tudo através de uma camada de poeira que tento limpar imediatamente; os tubos de desodorantes e as caixas de perfume também não passam intocadas, acumulando sobre si poeira perfumada. quando ligo o ventilador, ele espalha toda a poeira dele sobre a poeira dos outros e a dos outros umas nas outras, numa mistura de poeiras que me lembra muito as translocações genicas que ocorrem nas meioses e são responsáveis pela variabilidade genética. às vezes, antes de dormir, deixo um copo d’água em minha mesa de cabeceira, quando tomo um gole dele ao acordar sinto a poeira descendo em minha garganta. vassouras e panos e aspiradores de pó parecerem não dar conta de toda a poeira e pó acumulados em meu redor. todas as coisas em minha vida se amontoam com o objetivo de criar poeira: uma fina camada que está sobre tudo o que toco ou já toquei. e tudo aqui dentro parece mais velho do que é, por causa dessa poeira acumulada, dessa sujeira quase sem fim, inclusive eu.

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Vá.

claro de manhã, o sol entrando pela janela aberta, as cortinas velhas já não são mais escuras, e guardam em si camadas de poeira como se fossem lembranças dos dias de antes. a cama está desforrada e ele só pensa em ficar nela o dia todo, mas seus olhos se abrem e ele sabe que não tem mais volta. a vida voltou aos trilhos e os sonhos ficaram para trás.

ouve os carros na rua, sempre caindo no mesmo buraco no meio da avenida, os ônibus, caminhões, veículos de passeio. sempre esperou pelo motoqueiro que caísse no buraco e morresse no asfalto, mas isso nunca aconteceu. de uma forma mórbida, isso o decepcionava.

não tem vontades maiores que um café. quase nunca sente fome antes das dez e o relógio ainda mostra sete no dígito das horas. os minutos passam seguidos um do outro, como sempre e, quando ele resolve levantar para escovar os dentes e preparar seu café preto, já está tão avançado que o sete já é quase oito.

espalhados pelos cantos da casa estão lembranças da noite passada. a garrafa vazia na cozinha, o copo sujo na sala, o telefone quebrado no chão, o espelho em cacos no banheiro e uma poça de vômito seco perto do vaso sanitário. precisava de uma empregada que limpasse para ele. sentia falta de seu lar, o que o fazia rir, porque dias antes estava pensando justamente que não tinha mais nenhum lugar que pudesse chamar de casa.

a geladeira está vazia, fora o pote de pó café que ele pega e derrama direto no filtro, medindo com o olho até achar que será uma bebida forte o suficiente para o que está sentindo. o estômago começa a queimar e a cabeça começa a doer. esfrega os olhos, pega a caneca e leva consigo até a mesa da sala.

cata os pedaços do telefone, tenta encaixá-los: uma atitude infantil da qual logo se envergonha. o que ele espera? que os pedaços se unam magicamente e voltem a funcionar? ele sabe que as coisas não se remediam assim, tudo é muito mais trabalhoso. sempre.

toma um longo gole do café quente e sente sua boca ficando dormente, não sentindo sabor nenhum, seu esôfago queima e o estômago embrulha. faz uma careta de dor. no segundo gole, no entanto, é mais comedido, tenta sentir o sabor e fica mais tranquilo. não pelo café em si, mas pelo ritual de bebê-lo.

tenta fugir das memórias da noite passada – o desentendimento, a briga, os gritos, o tapa em seu rosto, o sangue em seus olhos -, mas não consegue. seria como negar a sua própria existência naquela manhã. recorda-se do caminho até sua casa, feito a pé com a garrafa de bebida na mão – a mesma que está vazia jogada no chão da cozinha -, que ele comprou no posto de gasolina perto da casa dela e veio tomando até a sua. e lembrava do gosto da raiva sendo abastecida pelo álcool, o que só fazia com que crescesse e crescesse como uma labareda a consumí-lo.

abre um livro na tentativa de esquecer e leitura flui até certo ponto, quando a personagem se encontra confusa e se perguntando quais são os limites da realidade e do tempo: o que é o passado e o futuro, se tudo o que temos é o presente, mas ele já passou? nesse instante ele para a leitura e começa a lembrar. não tem mais como fugir, por mais que tente.

tudo começou tão bem, os beijos, abraços, sorrisos, aquela coisa toda de antes da tempestade vir a bonança. mas ambos sabiam que nada ia bem há tempos. foi um comentário que ele fez. sempre era um comentário que ele fazia. ele e sua mania de tratá-la como sua melhor amiga, como se ela quisesse escutar seus comentários mais sinceros e honestos e estivesse pronta para entendê-lo da maneira mais essencial que uma pessoa possa entender a outra. sempre tivera essas ilusões românticas. não sabia qual foi o primeiro comentário, se foi a colega de trabalho que lhe dera o número de telefone e pediu que ligasse para saírem qualquer dia ou se foram as risadas quando ela começou a demonstrar o ciúme, como se fosse aquilo fosse uma piada, mas para ele era óbvio que se ele quisesse traí-la, não diria que conseguiu o número de uma colega disposta a sair. não conseguia entender que ela se chateasse com aquilo.
foi alguma coisa entre um e outro, mas havia um infinito entre esses dois pontos.

no fim, ele disse.

“se você me pedir para ficar, eu fico.”
“pode ir.”

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a solução.

a solução é foder. foder como se fosse a única coisa, a única salvação, a única verdade, a melhor religião. foder como se tivéssemos acabado de nascer e descobrimos na foda o prazer da amamentação, o calor do corpo alheio; como se tivéssemos mil anos e não fodêssemos há séculos, como se o outro fosse você e vocês fossem um ser só. foder como se fosse a única coisa que existisse e nunca nos perguntamos se poderia existir algo além disso. foder como se anjos descessem do céu anunciando a vinda do salvador a cada movimento ritmado e os santos regozijassem e cantassem hosana nas alturas a cada gemido de prazer. foder como se, enquanto se fode, fôssemos capazes de esquecer o que somos, o que fomos e desaparecer com toda aquela idéia do que podemos ser, nos apagar do mundo e nos firmar na história. foder como se isso nos separasse dos outros, nos elevasse a divindade, nos jogasse no paraíso e nos desse todo o poder e glória, agora e para sempre. amém.

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c.

c. nasceu numa família pobre, mas nunca lhe faltou educação. dona maria, sua mãe, sempre lhe ensinou o que era certo e errado segundo os preceitos divinos, e lhe disse para nunca matar e sempre honrar pai e mãe, além, é claro, de amar a deus sobre todas as coisas.

o pai de c., seu josé, pedreiro há vinte anos, não sabia ler e só conseguia escrever o nome, e dizia a seu filho todo dia que a maior alegria que já sentira foi ver que sua criança aprendera a ler e a escrever aos seis anos de idade. na formatura do abc de c., e isso ele se lembra bem, viu seu pai chorando pela primeira vez na vida. esse fato só viria a se repetir anos depois, quando d. maria seria consumida pelo câncer de ovário e morreria numa cama de hospital.

foi por volta dos treze anos que c. percebeu de fato que era diferente dos outros meninos e que apreciava a companhia deles não apenas com propósitos de brincadeira. um dia comentou a mesa do jantar que achava um de seus colegas muito bonito. apanhou em casa do pai e viu sua mãe chorar por dias e dias, implorando a seu josé que não expulsasse c. de casa, que ele era apenas um menino e que não sabia o que estava falando. d. maria pediu a c. que nunca mais comentasse qualquer coisa do tipo na casa. por amor e respeito, c. prometeu e cumpriu com sua palavra. c. nunca mais apanhou em casa depois desse dia. no entanto, as surras se tornaram rotineiras na escola e frequentemente chegava cheio de hematomas.

aos catorze, c. arranjou seu primeiro emprego, cujo salário utilizava para auxiliar seus pais em casa. sr. josé e d. maria se sentiam orgulhosos pelo filho trabalhador, mas sempre o estimularam a se focar nos estudos. o filho único era a esperança do casal, que tinha o sonho de um dia serem pais de um professor, um advogado, um engenheiro ou um médico.

aos dezessete ele terminou os estudos do ensino médio e começou a cursar matemática na universidade. o primeiro ano foi corrido e difícil, mas conseguiu concluir sem dever matérias. vinha dando aulas para o ensino fundamental e ensino médio, mas tinha que conciliar com a faculdade, de forma que sua atenção nunca fosse dada exclusivamente a um só local. seguiu nesse ritmo até o meio do sexto período, momento em que sua mãe começou a apresentar um inexplicado aumento do volume abdominal, fazendo com que perdesse algumas muitas aulas acompanhando-a em consultas médicas que pareciam não levar a lugar algum. foi quando ele tinha vinte anos que marcaram a cirurgia para estadiar o câncer.

como resultado da cirurgia veio a informação de que não havia muito a se fazer por dona maria, e que o mais recomendável a ela era a paliação, tendo em vista o conforto da paciente e um maior contato com as pessoas amadas. naquele ano c. trancou a faculdade e largou seus empregos para cuidar exclusivamente da mãe. foi nas idas ao hospital que conheceu t., técnico de enfermagem que o auxiliou em relação aos cuidados com sua mãe e lhe serviu de apoio quando acreditava que não aguentaria mais e se punha a chorar. c. compartilhava com t. momentos íntimos e intensos e t. sempre o acolhia em seus braços. acabaram se apaixonando.

quando d. maria morreu, sr. josé começou a beber. alguns dias voltava para casa bêbado e derrubava sua bicicleta no chão da sala, sujava a casa de vômito e quebrava alguns copos na cozinha. alguns dias não voltava. no começo c. se preocupava com seu pai nas noites em que não voltava. depois percebeu que precisava voltar a viver sua vida. tentou retornar ao curso, para concluir e poder começar a trabalhar exclusivamente, mas não encontrava ânimo em nada. fazia tempo que não sentia mais prazer. passou a pedir a t. que não mais o ligasse e nem viesse a sua casa. não queria mais vê-lo. um dia, depois de sair bêbado do bar pedalando sua bicicleta, sr. josé encontrou no caminho um carro com o qual se chocou. o motorista, um jovem também alcoolizado, não prestou socorro. sr. josé morreu dois dias depois. três meses após d. maria.

foi um vizinho que lhe disse que tinha algo que poderia ajudá-lo. bateu uma tarde à porta de sua casa, entrou, desenrolou uma pedra de crack, colocou-a num cachimbo e a queimou, oferecendo a c., que aceitou sem pensar muito nas repercussões daquela ação. fumaram a primeira pedra em cerca de quinze minutos. a sensação que c. sentiu, descreveu ele, não estava em nada que até então vivera. era um êxtase intenso, uma sensação de ser capaz de entender tudo e ser parte do todo. assim que acabaram de fumar, c. entregou cem reais na mão do vizinho e lhe disse para comprar mais. naquele mesmo dia fumaram quase todas as pedras. no fim da semana, c. já não tinha dinheiro consigo. seu vizinho olhou ao redor e disse: “cara, você tem um monte de coisas aqui que não servem para nada e dariam um bom preço.” naquele dia arrancaram os assentos dos vasos sanitários, que eram de acrílico, e os trocaram por assentos de plástico, venderam uma das duas televisões da casa – a maior -, venderam o sofá -“pra que um sofá, cara, você tem cadeiras!” -, e algumas cadeiras – “cadeiras demais, até!”. o dinheiro obtido serviu para uma semana de pedra. seu vizinho passou a viver em sua casa e começaram um relacionamento.

por volta do segundo mês de usuário, c. recebeu a visita de t., mas não quis recebê-lo. t. forçou sua entrada e encontrou a casa completamente vazia. na sala só restava um colchão nu, deitado no chão. não havia mais camas, móveis ou eletrodomésticos. c. estava pesando metade do que pesava três meses atrás. pedia para t. ir embora, e dizia que não queria que ele o visse daquele jeito – dois de seus dentes haviam caído, sendo um deles devido a uma briga que tivera com seu vizinho antes de ele o abandonar três dias atrás, levando consigo pouco do dinheiro que restava, mas deixando pedras de crack o suficiente para que c. fumasse sem apresentar qualquer sinal de abstinência.

t. o abraçou e pediu para levá-lo consigo. “você precisa ser ajudado, c.. você precisa!” dizia t. entre lágrimas. c. baixou a cabeça e só concordou.

“eu só queria me sentir melhor, t.. eu só queria isso. eu sinto falta…” o choro quebrou sua voz e as lágrimas brotavam de seus olhos injetados. “eu sinto tanta falta.”

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