nas horas de solidão costumava entrar em sites de bate papo. esse era um hábito que adquiriu no início do quadro de insônia e já se prolongava há meses. nas salas de conversa ele se sentia melhor consigo mesmo: no meio de todos os esquecidos da madrugada, ele conseguia se encaixar. havia um local no meio da noite ao qual ele pertencia.
três da manhã no relógio e, enquanto todos os amigos dormiam – algo que ele mesmo deveria fazer -, ele, com os ombros cansados, os olhos pesando e ardendo, buscava pessoas desconhecidas com quem falar sobre os aspectos mais corriqueiros da vida: seu trabalho, seus objetivos, suas conquistas, seus amores. gostava de saber o que aquelas pessoas tinham a dizer, queria saber as opiniões da “gatinha_sapeca” sobre sua vida, bem como ansiava por entender o que a levava ali, como ele, em busca de outros seres solitários, ou ainda corrigir mentalmente seu português, bem como da maioria das pessoas com quem conversava. às 03:25 entrou “ligia”, um apelido muito incomum numa sala.
“alguém de verdade aí?” ela perguntou privativamente para todo mundo.
“excelente questionamento.” foi a resposta dele a ela, também numa janela privada.
“oi.”
“olá, e essa noite, como está?”
“muito mal.”
“ah. bem, se quiser falar sobre isso, estou aqui. não se preocupe em me fazer dormir, tomei café demais para um dia, e está mais perto da hora de levantar que da de deitar.”
alguns minutos se passaram até que ele obtivesse uma resposta dela.
“desculpa. é que fui preparar algo para comer aqui.”
“onde é aqui?”
“aqui em casa.”
“certo, certo. resistente a falar demais. compreensível. quero deixar claro que não sou um desses malucos que buscam suas vítimas na internet. talvez o te_kero_toda seja assim, mas estou aqui só pela distração que pessoas novas são.”
“ahahaha bom isso de distração. bem honesto da sua parte.”
gostou dela por não ter usado kkk ou rs como forma de expressar um possível riso. sabia que estava longe de fazê-la rir, mas na internet as pessoas buscam consolo nas menores das expressões, e a risada é a melhor maneira de mostrar que a conversa está indo menos mal do que o esperado. ela estava digitando.
“o que te fez entrar nesse bate papo?”
“insônia. tristeza, associada a isso, talvez. eu diria que a vida e as escolhas que tomei me trouxeram a essa sala. ahaha. e você, o que faz uma suposta mulher chamada ligia entrar numa sala de bate papo com o apelido mais honesto e cara limpa que já vi aqui em tempos?”
“então você vem sempre aqui?”
“infelizmente a insônia e a solidão vêm batido em minha porta há um tempo.”
“já é a segunda vez que você fala em solidão. qual é a dessa depressão, homem de deus?”
“ei, ei, ei! calma lá! eu ainda não sei nada sobre você e suas motivações. você já sabe que sofro de insônia e, possivelmente, tenho alguns traços depressivos. tudo o que sei de você é que talvez seja uma mulher, que talvez se chame ligia e que talvez também esteja sofrendo de insônia nessa noite chuvosa. então me diga em nome dos tempos áureos desse bate papo: nome e idade.”
“que inquisitivo você! meu apelido é meu nome mesmo, e eu tenho 43 anos. e você, senhor ‘lorde_soth’, suponho que esse não seja seu nome e nem que seja da nobreza. nome e idade, e aproveito para perguntar o que é que você faz da vida. digo, em que você trabalha.”
“é, meu nome não é soth, não sou um lorde. na verdade, esse meu apelido foi dado a mim por mim mesmo. ahaha é um personagem trágico que gosto muito. pode procurar na wikipedia. deve ter algo sobre ele.”
“hm… pesquisar na wikipedia… certo…”
“é, eu sei, não é a melhor fonte nem nada, mas quem precisa confiar na fonte de um personagem de um livro? além do mais, não é que haja dissertações de mestrado analisando os traços desse personagem nem nada. então, contente-se com wikipedia.”
“calma, calma. contento-me sim, cavaleiro da rosa negra. mas, além de ser um cavaleiro de um livro que nunca ouvi falar, o que você faz?”
“meu nome é saulo, tenho 32 anos, e sou professor de inglês. agora você sabe mais sobre mim do que eu sobre você. invertamos isso agora.”
“ahaha e o que você quer que eu diga? o que eu faço? sou mãe de duas crianças, uma de 25 e uma de 13.”
“criança de 25 anos, hein?”
“ahahaha é sim. sempre será um bebê para mim.”
“certo, certo. acredito que isso seja algo de mães. você é mãe profissional ou tem outro trabalho?”
“sou formada em psicologia, mas nunca trabalhei na área. sou agente da polícia federal e passo a maior parte do tempo on line procurando pedófilos.”
“ahahahaha que história sensacional.”
“não é? também acho muito boa, principalmente quando os encontro.”
“alguma sorte hoje?”
“até agora nada.”
“ah.”
“a não ser que você seja pedófilo.”
“ahahaha não, senhora agente da polícia federal. gosto das minhas garotas maiores de idade.”
“continue assim e não terei que aparecer na sua casa, saulo.”
“continuarei, dona lígia.”
“muito bem. mas hoje não é a busca por pedófilos que me fez entrar nesse bate papo, mas, como você colocou quando falou de si mesmo, a solidão.”
“que é que houve?”
“vai ser meu psicólogo, teacher?”
“não posso, não estudei para isso, mas, diacho, aqui você pode escrever sabendo que alguém do outro lado está lendo e, se tivermos sorte, vai interagir com a gente. e não é isso que todos nós buscamos aqui nesse bate papo na madrugada? um pouco de interação? alguém que demonstre um mínimo de interesse por nós?”
“isso e criancinhas.”
logo ela digitou
“ahahaha estou brincando com você. sei que você não tem um histórico de pornografia infantil.”
“ah é? como sabe disso?”
“porque acabei de checar seu histórico criminal, e está tudo limpo. você é um homem bastante honesto para quem visita essas salas de bate papo, sabia? na verdade, de todos aqui, você é a maior surpresa que eu tive em um bom tempo.”
essa era a conversa mais esquisita que ele teve na história de suas insônias.
“oi?”
“você é um bom garoto, saulo. gostei de você. vou tentar dormir agora. me manda um email esses dias, a gente marca de tomar um café, uma cerveja, um suco.” e ela digitou seu endereço de email.
“ok, eu acho.”
“boa noite, guri.”
“boa noite, dona policial.”
“ahahah se cuida.”
e às 04:46 lígia saiu da sala.
saulo não conseguiu fechar os olhos até as 17:36, quando chegou em casa depois de sua última aula do dia e, depois de um banho, vestiu uma bermuda limpa e deitou na cama. pensara o dia inteiro naquela conversa esquisita, em como aquela suposta mulher o fez sentir medo e desejo ao mesmo tempo, excitação, vontade de estar vivo e de conhecê-la melhor. acreditou ter sonhado com ela ao acordar às 03:25, e buscou algo para comer em sua geladeira. não pensou que faria aquilo, mas às 04:13 escreveu o email para lígia.